2.06.2008

A existência de Deus; o critério da evidência racional


Depois examinei com atenção que coisa eu era, e vi que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou lugar onde existisse, mas que apesar disso não podia admitir que não existia. Pelo contrário, porque pensava, ao duvidar da verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que existia, ao passo que bastava que tivesse deixado de pensar para deixar de ter qualquer razão para acreditar que existia, mesmo que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro.

Depois disto considerei o que de uma maneira geral é indispensável a uma proposição para ser verdadeira. Como acabava de encontrar uma com esses requisitos, pensei que era preciso também saber em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no eu penso logo existo que me garanta que digo a verdade a não ser que concebo muito claramente que para pensar é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito clara e distintamente.

Depois, ao reflectir que não era completamente perfeito visto que duvidava – e que via claramente que conhecer é uma perfeição maior do que duvidar – lembrei-me de procurar de onde me teria vindo o pensamento de alguma coisa mais perfeita do que eu, tendo percebido com toda a evidência que deveria ter vindo de algum ser cuja natureza fosse efectivamente mais perfeita.

Não me era difícil saber de onde me teriam vindo os pensamentos que tinha de muitas outras coisas exteriores a mim, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitas outras, pois nesses pensamentos não notava nada de superior a mim. Mas já não acontecia o mesmo com a ideia de um ser mais perfeito do que eu, pois ter formado essa ideia do nada era manifestamente impossível. E porque repugna tanto admitir que o mais perfeito seja uma consequência e dependa do menos perfeito como repugna admitir que algo possa surgir do nada, não podia também aceitar que tivesse sido criada por mim próprio. De maneira que restava apenas admitir que essa ideia tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, e que tivesse em si todas as perfeições que eu pudesse idealizar, ou seja, numa só palavra, que fosse Deus.

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